da consciência



[...] Hoshino se lembrou da própria infância. Dos tempos em que ia diariamente pegar peixes num ribeirão próximo à sua casa. Bons tempos aqueles em que não tivera de pensar em nada. Só tivera de viver a vida como ela era. Vivendo, era alguma coisa. De maneira natural. Mas deixou de ser assim a partir de um certo tempo que não consigo definir com exatidão. Viver, apenas, passara a não significar que eu não era alguma coisa. Que história mais maluca, não é mesmo? Afinal, as pessoas nascem para viver, certo? Em vez disso, parece até que quanto mais eu vivia, mais perdia o conteúdo, isto é, me transformava num homem vazio por dentro. E pode ser que daqui para a frente, quanto mais eu viver mais vazio e insignificante eu me torne. Mas isso está errado. Não tem pé nem cabeça. Será que posso mudar o rumo dos acontecimentos?




Haruki Murakami

Kafka à beira-mar


da feitura do poema



Os momentos que antecedem o surgimento de um poema, quando ocorre a expansão da consciência e você percebe que existe um poema em algum lugar, você se prepara. Eu corro ao redor da casa, saltitando, é uma exaltação maravilhosa. É como se pudesse voar, quase, e sinto-me muito tensa antes de ter contato com a verdade – a verdade dura. Então sento-me e dou a partida.



[...]



Acredito que sou muitas pessoas. Quando estou escrevendo um poema, sinto que sou a pessoa que deveria tê-lo escrito. Assumo com freqüência esses disfarces; eu os abordo como faria um romancista. Às vezes me torno outra pessoa, e quando isso acontece, acredito – mesmo nos momentos em que não estou escrevendo o poema – que sou essa pessoa.



Anne Sexton em entrevista a The Paris Review

Escritoras e a arte da escrita


o encanto do que não se explica



A beleza é uma forma de gênio... mais elevada até que o gênio, pois dispensa explicação. Faz parte dos grandes fatos do universo, como a luz do sol, ou a primavera, ou o reflexo nas águas escuras, dessa concha de prata que chamamos lua. A beleza não sofre contestação.



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Grey


II



Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que nosso tempo é agora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque mais vasto é o sonho que elabora

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza
E transitória se tu me repensas.


Hilda Hilst

Júbilo, memória, noviciado da paixão


da responsabilidade individual



Não se pode dizer primeiro que nosso destino terrestre tem ou não tem importância, pois depende de nós conceder-lhe uma.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


os bobos da corte e sua arte



Nas cortes é uma velha e sábia tradição que o Bobo ou Jogral ou Poeta tenha por função reverter os valores sobre os quais o soberano baseia seu domínio, e zombar deles, e lhe demosntrar que toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de peças que não se ajustam, todo discurso contínuo um blablablá. Todavia, há vezes em que estes chistes provocam no Rei uma vaga inquietação: essa também está decerto prevista, até mesma garantida por contrato entre o Rei e seu Jogral, mas nem por isso deixa de ser um tanto inquietante, não só porque a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se, mas principalmente porque ele se inquieta de verdade.



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados