do barato



Mas existe um realidade percebida, e o ser humano não pode tolerá-la e aí altera a percepção. Desde que o homem é homem, ele procura milhares de vias, as mais conhecidas sendo o álcool e as drogas em geral, naturais ou não. A música é isso, a música não é senão isso, o único intermediário é o ouvido, ela vai direto e afeta quem a ouve, nunca deixa de afetar, de uma maneira ou de outra.



João Ubaldo Ribeiro

A casa dos budas ditosos


da força necessária ao exercício



Porque a beleza é o gesto involuntário, próprio de determinada personalidade. Ela torna-se tanto mais perfeita, quanto mais estiver livre do medo e da inquietação, quanto mais seguro estiver o artista para percorrer o caminho que conduz à sua realização mais sagrada.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


sobre tudo o que fica



apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme


Paulo Leminski

ps. o título da postagem não é o do poema.



conheça-te a ti mesmo



Acho difícil falar sobre mim mesmo. Sempre tropeço no eterno paradoxo quem sou eu? Claro, ninguém conhece tantos dados sobre mim quanto eu. Mas quando falo de mim mesmo, todo tipo de outros fatores - valores, padrões, minhas próprias limitações enquanto observador - faz de mim, o narrador, selecionar e eliminar coisas sobre mim, o narrado. Sempre me perturbou o pensamento de que não estou pintando um quadro muito objetivo de mim mesmo.

Este tipo de coisa não parece incomodar a maior parte das pessoas. Tendo oportunidade, mostram-se surpreendentemente francas quando falam de si mesmas. "Sou franco e aberto em um nível absurdo", dirão, ou "Sou muito suscetível, não sou do tipo que se move no mundo com facilidade". Ou "Sou bom em sentir o verdadeiro sentimento dos outros". Porém, muitas vezes, vi pessoas que dizem se magoar facilmente magoarem o outro sem uma razão aparente. Gente que se diz franca e aberta, sem se dar conta do que está fazendo, usa descuidadamente alguma desculpa oportunista para conseguir o que quer. E aqueles "bons em sentirem os verdadeiros sentimentos dos outros" são enganados pela bajulação mais aparente. É o bastante para me fazer perguntar: O quanto realmente nos conhecemos?




Haruki Murakami

Minha querida sputnik


sobre Ela



A Mulher Selvagem como arquétipo é uma força inimitável e inefável que traz para a humanidade um abundante repertório de idéias, imagens e particularidades. O arquétipo existe por toda a parte e, no entanto, não é visível no sentido comum da palavra. O que ser pode ser visto dele no escuro não é visível a luz do dia.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


o homem público nº1 (antologia)



Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.


Ana Cristina Cesar

A teus pés


tudo da mesma matéria



Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por regras. O prazer muito vira medo, o medo vira ódio, o ódio vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para um amor – quanta saudade... – ; aí outra esperança já vem... Mas brasinha, de tudo, é só o mesmo carvão só.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


da carta de Maga a seu filho



Rocamadour, já sei que és como um espelho. Estás dormindo ou olhando os pés. Eu aqui seguro um espelho e creio que és tu. Mas não acredito nisso, escrevo-te porque não sabes ler. Se soubesses, não te escreveria ou escreveria coisas importantes. O dia chegará em que terei de escrever para recomendar que tu te comportes ou que te agasalhes. Parece incrível que alguma vez Rocamadour. Agora, somente te escrevo no espelho, de vez em quando tento secar o dedo, porque fica molhado com as lágrimas. Por que, Roucamadour? Não estou triste, tua mamãe é uma tola, queimei o borsch que tinha feito para Horacio; sabe muito bem quem é Horacio, Rocamadour, é aquele senhor que, no domingo, levou-te um coelhinho de feltro e que se aborrecia muito porque tu e eu falávamos tanto e ele queria voltar a Paris; foi então que começaste a chorar e ele mostrou como o coelhinho mexia as orelhas; nesse momento, ele ficou muito bonito, estou falando de Horacio, algum dia compreenderás, Rocamadour.



Julio Cortázar


O Jogo da amarelinha
capítulo 32


para quem sabe gozar o texto



Havia, parece, uma música do Texto. Todo o esforço consiste, ao contrário, em materializar o prazer do texto, em fazer do texto um objeto de prazer como os outros. Quer dizer: seja em aproximar o texto dos “prazeres da vida” (...) e em fazê-lo entrar no catálogo de nossas sensualidades, seja em abrir para o texto a brecha da fruição, (...) identificando então esse texto com os momentos mais puros da perversão.



Roland Barthes

O prazer do texto


da extensão do sentir



E eu – como é que eu posso explicar ao senhor o poder de amor que eu ? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


da delicadeza de compartilhar o impactante




Embora Florença se estenda à minha frente de maneira tão ampla e generosa (e talvez exatamente por causa disso), ela inicialmente perturbou-me e confundiu-me de tal modo que eu mal conseguia distinguir e selecionar as minhas impressões, e acreditava estar submergindo no grande turbilhão de algo deslumbrante, para mim inédito e desconhecido. Somente agora começo a recobrar a respiração. As recordações torna-se mais claras e distinguem-se umas das outras, sinto o que ficou retido nas minhas redes e percebo que aquilo que recolhi é muito mais abundante do que eu esperava. Sei o que continua sendo minha propriedade, e quero expor peça por peça diante dos teus olhos amados, luminosos. Com toda tranqüilidade, sem te arrastar freneticamente de um lugar a outro, e sem pretender ser minucioso, haverei de mostrar-te uma coisa ou outra, dizer-te o que cada uma representa para mim, e em seguida recolherei essas coisas novamente, abrigando-as em meu repositório.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença



a sutileza (e o poder) das negativas



Quanta mulher não comeu o homem que quis, apenas porque ele não podia recusar uma mulher? Uma mulher se tranca com um homem num quarto e diz que ele vai comer ela. Ele tem que comer, a não ser que ela seja o Corcunda de Nôtre Dame. Ate mesmo recusar uma mulher obedece a normas, porque é estabelecido o direito de ela se ofender, se a recusa for fora das normas. Por exemplo, "você é feia, e eu não vou lhe comer", não se diz uma coisa dessas a uma mulher. Para não fazer uma inimiga mortal, o recusador tem que ser artista. Já a mulher pode recusar perfeitamente e mesmo nos piores termos - "você nunca, tá?" -, as mulheres sabem do que estou falando, sou uma feminista esclarecida-progressista, sou um grande homem-fêmea.



João Ubaldo Ribeiro

A casa dos budas ditosos


anterior às idéias



Por que escrevo isto? Não tenho idéias claras, sequer tenho idéias. Há trapos, impulsos, bloqueios. E tudo procura uma forma, então entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não pelo que chamam de pensamento e aque faz a prosa, a literatura ou outra coisa. Há primeiro uma situação confusa, que mal se pode definir pela palavra; é dessa penumbra que eu parto e, se aquilo que quero (se aquilo que quer dizer-se) tiver força suficiente o swing começa imediatamente, um oscilar rítmico que me traz para a superfície, que ilumina tudo, que conjuga essa matéria confusa e o que a castiga numa terceira instância, clara e como que fatal: a frase, o parágrafo, a página, o capítulo, o livro.



Julio Cotázar

O jogo da amarelinha
capítulo 82


inconstância



Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também… nem eu sei quando…


Flobela Espanca

Livro de 'Sóror Saudade'


da força da escolha



Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipóteses através de experimentos, de maneira que nunca saberá se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


Se tu viesses ver-me...



Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…


Florbela Espanca

Charneca em Flor