da proibição



Não se pode ser infeliz, não se pode morrer em vida, não se pode desistir de de amar, de criar. Não se pode. É pecado.



Caio Fernando Abreu

Cartas
a Gerd Hilger em 03.02.94


eu



eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha


Paulo Leminsk


das dificuldades sublimes



Não se deixe enganar por sua solidão só porque há algo em você que deseja sair dela. Justamente este desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um territóio mais vasto. As pessoas (com o auxílio das convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda a resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos que nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.

Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, não podem amar: precisam aprender o amor. Mas otempo do aprendizado é um longo perído de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio amor nada é do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa. (Pois o que seria a união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma opotunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe [...] a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante.



Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta


das fêmeas e afazeres



Cada mulher tem acesso potencial ao Río Abajo Río, esse rio por baixo do rio. Ela chega até ele através da meditação profunda, da dança, da arte de escrever, de pintar, de rezar, de cantar, de tamborilar, da imaginação ativa ou de qualquer atividade que exija uma intensa alteração de consciência. Uma mulher chega a esse mundo-entre-mundos através de anseios e da busca de algo que ela vê apenas com o cantinho dos olhos. Ela chega até lá com artes profundamente criativas, através da solidão intencional e da prática de qualquer uma das artes. E mesmo com essas práticas bem executadas, grande parte do que ocorre neste mundo inefável permanece um mistério para nós por desrespeitar as leis da física e racionais como as conhecemos.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


da vida prática



não se enlouquece quando se tem um tanque cheio de roupa suja pra dar conta. Não é possível a gente se dar a esse luxo.



Caio Fernando Abreu

Cartas
a Maria Lídia Magliani em 10.09.91


dos ineditismos



Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida?



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


a dialética dos amantes




Piet Mondrian







- Acho que compreendo você - disse a Maga, acariciando-lhe o cabelo. - Você está procurando alguma coisa e não sabe o que é. Eu também. E também não sei o que é. Mas são duas coisas diferentes. Aquilo de que vocês falavam na outra noite... sim, você é mais um Mondrian e eu sou uma Vieira da Silva.

- Ah! - exclamou Oliveira - Então, eu sou um Mondrian.

- Sim, Horacio.

- Você quer dizer que sou um espírito cheio de rigor.

- Eu disse um Mondrian.

- E você não desconfiou que por trás desse Mondrian pode começar uma realidade Vieira da Silva?

- Oh, sim - respondeu a Maga. Mas você, até agora, não saiu da realidade Mondrian. Tem medo, quer estar seguro. Não sei de quê... Você é como um médico, não como um poeta.

- Deixemos os poetas de lado - disse Oliveira. - E não faça o pobre Mondrian ficar mal com a comparação.

- Mondrian é uma maravilha, mas não tem ar. Sua pintura me deixa um pouco oprimida. E quando você começa a dizer que seria necessário encontrar a unidade, então, eu vejo as coisas muito bonitas, mas mortas, flores dissecadas e coisas assim.

- Vamos ver, Lucía: você sabe bem o que é a unidade?

- O meu nome é Lucía, mas você não tem de me chamar assim - disse a Maga. - Claro que sei o que é a unidade. Você queria dizer que tudo na sua vida se junta para que possa ver tudo ao mesmo tempo, não é?

- Mais ou menos - concedeu Oliveira. - É incrível a dificuldade que você tem para captar noções abstratas. Unidade, pluralidade... Você não é capaz de sentir tudo sem recorrer a exemplos... Não, não é capaz. Enfim, vamos ver: a sua vida, por exemplo, será um unidade para você?

- Não, não creio. São pedaços, coisas que me foram acontecendo.



Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 19

da descontrução



Não posso esperar nunca que alguém me dê a liberdade. A liberdade tem que ser construída por nós mesmos. Como? Cada qual tem de descobrir por si só. Minha liberdade eu construo escrevendo, pintando, mantendo a minha visão simples do mundo, espreitando na selva como um animal, impedindo intromissões na minha vida privada. O essencial para o homem é a liberdade. Interior e exterior. Atrever-se a ser você mesmo em qualquer circunstância e lugar. A liberdade é como a felicidade: não chega nunca. Nunca se tem completa. É só um caminho. A gente caminha atrás da liberdade e da felicidade. E assim se vive. É só a isso que se pode aspirar. Faz alguns anos, e durante muito tempo, minha vida andou presa a sistemas, a conceitos, a preconceitos, a idéias pré-concebidas, a decisões alheias. Aquilo era autoritário e vertical demais. Não conseguia amadurecer assim. Vivia numa jaula, como um bebê que protegem e isolam para que jamais amadureça seus músculos e desenvolva seu cérebro. Tudo desmoronou diante de mim. Dentro de mim. Com muito estrondo. E fiquei à beira do suicídio. Ou da loucura. Tinha de mudar alguma coisa no meu interior. Do contrário podia acabar louco ou cadáver. E eu queria viver. Simplesmente viver. Sem pressões. Talvez com algum dia feliz. E reduzir as angústias. Isso é imprescindível: reduzir as angústias. Quem sabe seja só uma questão de mudar de ponto de vista. É preciso estar plenamente presente onde a gente se encontra, e não escapar sempre.



Pedro Juan Gutiérrez

Animal Tropical


esfinge



Sou filha da charneca erma e selvagem:
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d' oiro, p'los caminhos,
Desta minh’alma ardente são a imagem.

E ansiosa desejo — ó vã miragem -
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca, e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço da paisagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade,
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da Saudade…

E, à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar…
Esfinge olhando, na planície enorme…


Florbela Espanca

Livro de 'Sóror Saudade'


elogio do pecado



ela é uma mulher que goza
celestial e sublime
isso a torna perigosa
e você não pode nada contra o crime
dela ser uma mulher que goza

você pode persegui-la, ameaçá-la
tachá-la, matá-la se quiser
retalhar seu corpo, deixá-lo exposto
pra servir de exemplo.
É inútil. Ela agora pode resistir
ao mais feroz dos tempos
à ira, ao pior julgamento
repara, ela renasce e brota
nova rosa

Atravessou a história
foi queimada viva, acusada
desceu ao fundo dos infernos
e já não teme nada
retorna inteira, maior, mais larga
absolutamente poderosa.


Bruna Lombardi

O perigo do dragão


uma constatação



o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas tem de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais. Nós podíamos pôr quase tudo em comum exatamente porque a princípio não tínhamos quase nada. Bastava que eu consentisse em viver o que eu estava vivendo, em amar mais que tudo seu olhar, a sua voz, o seu cheiro, seus dedos afilados, o sei jeito de habitar seu corpo, para que todo o futuro se abrisse para nós.



André Gorz

Carta a D.


da habilidade



Cantar significa usar a voz da alma. Significa sussurrar a verdade do poder e da necessidade de cada um, soprar a alma sobre aquilo que está doente ou precisando de restauração. Isso se realiza por meio de um mergulho no ponto mais profundo do amor e do sentimento, até que nosso desejo de vínculo do Self selvagem transborde, e em seguida com a expressão da nossa alma a partir desse estado de espírito. Isso é cantar para os ossos.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


da intimidade com a poesia



Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.



Fernando Pessoa - Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos I


das contradições humanas



– Pode ser? – repete Oshima, agastado. – Meu jovem, pode ser que a grande maioria das pessoas existentes no mundo não esteja em busca de liberdade. As pessoas apenas pensam que estão. Tudo é ilusório. Caso a liberdade lhes fosse realmente concedida, a maioria se veria num mato sem cachorro. Lembre-se sempre disso. Na verdade, as pessoas gostam de se sentir presas, entendeu?



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


uma boa troca



E uma desilusão. Mas uma desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto, deveria se dizer assim: ele está muito feliz, porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas porque não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela possibilidade.



Clarice Lispector

A Paixão segundo G.H.


como nossos pais



Dizem que o despertar da infância se dá quando a criança não mais imagina os pais como deuses perfeitos. Os pais experimentam momentos assim com relação aos filhos também. Para eles, entretanto, a revelação é mais penosa, pois envolve um conhecimento das próprias falhas e imperfeições. Exige a aceitação de que não podemos nos redimir por meio de nossos filhos e nem poderemos salvá-los de seguirem seus próprios desígnios.



Prya Basil

Ishq & Mushq – Amor & Cheiro


sobre a fé



[...]

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele.
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
com o modo de falar que reparar para elas ensina)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E sol e luar e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe
(Que sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e àrvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.


Fernando Pessoa - Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos V


na realidade



uma das coisas que aprendi na minha vida é que deve viver apesar de. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi criadora de minha própria vida.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


o inexplicável



O mistério intimo das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.



Fernando Pessoa - Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos V


das fúrias



Que era: que a gente carece de fingir que às vezes raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando o pensar e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


Flor y cronopio



Un cronopio encuentra una flor solitaria en medio de los campos. Primero la va a arrancar, pero piensa que es una crueldad inútil y se pone de rodillas a su lado y juega alegremente con la flor, a saber: le acaricia los pétalos, la sopla para que baile, zumba como una abeja, huele su perfume, y finalmente se acuesta debajo de la flor y se duerme envuelto en una gran paz. La flor piensa: «Es como una flor».



Julio Cortázar

Historias de Cronópios y de Famas

Sus historias naturales


invasão



escuta, eu carrego esses pecados capitais, todos
sou gulosa, passional e nem sempre é santa a minha ira
mas das palavras não sou eu que faço uso
são elas, as geniosas, as venais
que se utilizam de mim e se divertem
com meu desespero de caçá-las
na minha insônia.
São elas, se mascaram, se camuflam
indisiosas
se insinuam, me enlouquecem
sem nunca ceder.

Peço uma trégua, não agüento mais
e Deus me pede uma paciência sem limite
Deus me pede que eu me sacrifique
para poder servi-las.

Acabo me entregando, cansada, extenuada, exaurida
veículo de sua vontade
eu deixo então de lado a minha vida
e a própria vida não tem mais importância
Através de mim elas se manifestam, as palavras
na plenitude de sua arrogância.


Bruna Lombardi

O perigo do dragão


na vida



Queremos livros que nos afetem como um desastre.

Um livro deve ser como uma picareta diante de um mar congelado dentro de nós.



Franz Kafka


canção de amor da jovem louca



Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para
a insanidade.

(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo
do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com
estrondo

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente)


Sylvia Plath


a dinâmica íntima dos começos



O que é isso de diário e correspondência? Acho que na vivência de todo mundo, diário e correspondência, diário e carta, é o tipo de escrita mais imediata que a gente tem. Quase todo mundo aqui, tenho certeza absoluta, que a maioria das pessoas já fez um diário íntimo ou faz um diariozinho, em adolescência ou até agora. E que a maioria absoluta das pessoas aqui também já escreveu alguma vez cartas, teve até uma correspondência meio intensa com algumas expectativas. Então, o primeiro tipo de produção de escrita que a gente tem – e isso quando a gente pensa um pouco em escrita de mulher... Mulher, na história, começa a escrever por aí, dentro do âmbito particular, do familiar, do estritamente íntimo. Mulher não vai logo escrever para o jornal. Historicamente, séculos passados, a mulher começa a escrever numa esfera muito familiar. E a gente começa a escrever também numa esfera muito familiar. Todo mundo terá essa experiência.



Ana Cristina Cesar

Crítica e Tradução
Escritos no Rio
depoimento no curso 'literatura de mulheres no brasil' em 1983


o enfrentamento do corpo



Não era a vaidade que a atraia para o espelho, mas o espanto de descobrir-se. Esquecia-se que tinha diante de si um painel de mecanismos psíquicos. Acreditava ver sua alma se revelando sobre os traços do seu rosto. Esquecia-se que o nariz é a extremidade por onde o ar entra para os pulmões. Via nele a expressão fiel de seu temperamento.

[...]

Agora podemos compreender melhor o sentido do vício secreto de Tereza e de suas longas permanências diante do espelho. Era um combate com sua mãe. Era o desejo de não ser um corpo como os outros, mas de ver sobre a superfície de seu rosto a tripulação da alma surgir do ventre do navio. Não era fácil porque sua alma triste, medrosa, perturbada, escondia-se no fundo de suas entranhas, com vergonha de aparecer.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


das facilidades enganadoras



É mais fácil vender a própria liberdade com vistas à segurança material, do que levar uma existência responsável e livre e ser senhor de si mesmo.



Wilhelm Reich

A função do orgasmo


canção da estrada aberta



I



A pé e com o coração iluminado, adentro a estrada aberta
Saudável, livre, o mundo diante de mim
A longa senda marrom em minha frente, conduzindo me para onde quer que
[eu escolha.

A partir de agora não peço mais pela boa sorte, pois eu mesmo sou a boa sorte
A partir de agora abandono as lamúrias, não mais procrastino, de nada mais
[necessito
Estou farto de reclamações entre quatro paredes, bibliotecas,
[críticas conflituosas,
Forte e satisfeito eu viajo pela estrada aberta

A Terra, ela é suficiente para mim
Não desejo as constelações mais próximas
Sei que estão muito bem no lugar em que estão
Sei que são suficientes para os que vivem por lá

(Ainda assim, por aqui carrego meus fardos deliciosos,
Carrego-os, homens e mulheres, carrego-os comigo onde quer que eu vá,
Juro que é impossível deles me livrar,
Estou realizado por eles, e hei de realizá-los em troca.)


Walt Whitman

Folhas de Relva


a volúpia criativa



Não: a arte não é um sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento que a pode legitimidade proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e estou completamente em desacordo com o que o consideram um parto. Nem posso compreender mesmo, essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva certamente da semalhança entre o filho e a obra-de-arte. O momento da criação é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e dadivosidade do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual. É tão sublime mesmo, é tamanha a integração, que a gente não pode se ilhar num estado de consciência e se analisar. O ser mais frágil do mundo, mais escravo, mais indefeso é o homem no momento da ejaculação: ele fica por completo inerme. Esse o momento da criação artística. O que sucede, é que esse momento é rapidíssimo (como a ejaculação), dura alguns segundos. E logo principia o trabalho mais penoso e principalmente muito mais inquieto de artefazer, corrigir, criticar, julgar, intencionalizar, dirigir a obra de arte, polir, etc., etc., sacrificar coisas que gosta em proveito de uma significação funcional da obra-de-arte, que é mais importante que a gente, o diabo. Nisso é que vem muito sofrimento, muita fadiga, muita indecisão. Mas é estranho como nesse trabalho longo, você constantemente se vê atirado na volúpia da criação, é incrível como você inventa.



Mário de Andrade

Cartas a um jovem escritor e suas respostas
carta a Fernando Sabino em 16.02.1942


das parecências



assim sempre corre o jovem em direção à mulher: mas será mesmo o amor que o conduz? ou não será sobretudo o amor por si mesmo, busca de uma certeza de estar ali que somente a mulher pode lhe dar? Corre e se apaixona o jovem, inseguro de si, feliz e desesperado, e para ele a mulher é certamente aquela que está ali, e só ela pode lhe oferecer aquela prova. Mas também a mulher está e não está: ei-la que se defronta com ele, igualmente trepidante, insegura, como é que ele não percebe? Quem importa entre os dois quem é o forte e quem o fraco? São semelhantes.



Italo Calvino

O Cavaleiro Inexistente


é fato



Um sentir é do sentente, mas o outro é o do sentidor.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


para trás, mas perto ainda



Alegre-se com seu crescimento, para o qual não pode levar ninguém junto, e seja bondoso com aqueles que ficam para trás, seja seguro e tranqüilo diante deles, sem perturbá-los com suas dúvidas nem assustá-los com uma confiança ou alegria que eles não poderiam compreender. Procure construir com eles algum tipo de comunhão simples e fiel, que não precise ser alterada à medida em que você se modifica cada vez mais. Ame neles a vida em uma outra forma


Rainer Maria Rilke

Cartas a um Jovem Poeta


fora de hora



Entrega fora de hora
e posse fora de hora.
Quem mandou
você atrasar a hora,
você apressar a hora,
você aceitar a hora
não madurada
ou demasiado madura?
O tempo fora de hora
não é tempo nem nada.
O amor fora de hora
é como rolar da escada.


Carlos Drummond de Andrade

Farewell


brincadeira



faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta de que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus,

(...)

faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava com os braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia o bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os punhos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a luz da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e um luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


das revoltas



Mas o que me assombra, o que me deixa por completo incompetente é ver como tem pessoas nesse mundo que acham que estão indo direitinho e se satisfazem com pouca coisa de si. Querem tudo pra si, honra, dignidade, virtude, posição, glória, riqueza, felicidade no amor e no jogo, tudo, até saúde e amigos “do peito”, mas quando é pra ceder um milímetro de sacrifício, ainda querem querem querem! querem para si o título de mártires, e de heróis decerto sou eu que não me conformo com o ser humano.



Mário de Andrade


Cartas a um jovem escritor e suas respostas
carta a Fernando Sabino em 02.02.1944


epigrama nº 8



Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo que eras nuvem, depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar quando caí.


Cecília Meireles

Obras completas

da autofidelidade



Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mesma mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assitisse minha vida sem eu saber - pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria.



Clarice Lispector

Correspondências
carta a Tânia Kaufman, em 1948


até que a morte os separe?



Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto a noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.



Nélida Piñon

I love my Husband
em Os cem melhores contos brasileiros do século


essas pequenas traiçoeiras



As palavras são assim, disfarçam muito, vão-se juntando umas com as outras, parece que não sabem aonde querem ir, e de repente, por causa de duas ou três, ou quatro que de repente saem, simples em si mesmas, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjetivo, e aí temos a comoção irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos, às vezes são os nervos que não podem agüentar mais, suportam muito, suportaram tudo, era como se levassem uma armadura



José Saramago

Ensaio sobre a Cegueira


da amizade



Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual, o igual, desarmado. O que de um tira o prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê que é.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


nuances da Maga



Todo mundo aceitava a Maga, imediatamente, como uma presença inevitável e natural, embora todos se irritassem por serem obrigados a explicar-lhe quase tudo o que estava sendo dito, ou ainda, por ela fazer voar um quarto de quilo de batatas fritas pelo ar, simplesmente por se incapaz de manejar decentemente um garfo, e assim, as batatas fritas iam sempre cair sobre a cabeça dos caras que se encontravam na mesa ao lado. Ainda por cima era preciso pedir desculpas a esses caras ou, então, dizer a Maga que ela era uma leviana.

[...]

Era insensato querer explicar alguma coisa à Maga. Fauconnier tinha razão: para pessoas como ela, o mistério começava exatamente com a explicação. A Maga ouvia falar de imanência e transcendência, abrindo uns olhos preciosos que interrompiam a metafísica de Gregorovius. No final, chegava sempre a convencer-se de que havia compreendido o Zen e suspirava cansada. Só Oliveira é que se dava conta de que ela estava constantemente se aproximando destes grandes terraços fora do tempo, que todos eles procuravam dialeticamente.




Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 4


casa comigo



casa comigo que te faço a pessoa mais feliz do mundo. a mais linda, a mais amada, respeitada, cuidada... a mais bem comida. e a pessoa mais namorada do mundo e a mais casada. e a mais festas, viagens, jantares... casa comigo que te faço pessoa mais realizada profissionalmente. e a mais grávida e a mais mãe. e a pessoa mais as primeiras discussões. a pessoa mais novas brigas e as discussões de sempre. casa comigo que te faço a pessoa mais separada do mundo. te faço a pessoa mais solitária com um filho pra criar do mundo. a pessoa mais foi ao fundo do poço e dá a volta por cima de todas. a mais reconstruiu sua vida. a mais conheceu uma nova pessoa, a mais se apaixonou novamente... casa comigo que te faço a pessoa mais “casa comigo que te faço a pessoa mais feliz do mundo”.



Michel Melamed

Regurgitofagia


entre as possibilidades e os atos



Sair, fazer, pôr em dia, não eram coisas que o ajudavam a adormecer. Pôr em dia. Que raio de expressão! Fazer. Fazer algo, fazer o bem, fazer xixi, fazer hora: a ação em todas as suas complicações. Contudo, por trás de toda e qualquer ação, havia sempre um protesto, pois todo fazer significava sair de para chegar a, ou mover algo para que ficasse aqui e não ali, ou entrar numa determinada casa em vez de entrar ou não entrar na casa ao lado, o que significava que em qualquer ato havia sempre a confissão de um falha, de algo ainda não feito e que era possível fazer, o protesto tácito diante da contínua evidência da falha, da mesmice, da imbecilidade do presente.

Julio Cortázar


O jogo da amarelinha
capítulo 3


a sagacidade de Sofía



Rímini pensou que ia chorar e desviou os olhos rapidamente. Foi um ato reflexo; sabia que não tinha a menor chance de disfarçar: para os signos do amor – e no amor ela incluía também tudo o que vem antes e depois do amor, tudo o que o escoltava, o que ficava em seu caminho, o que flutuava como um nuvem ao seu redor, o que o amor havia desalojado e o que havia desalojado o amor: tudo –, os olhos de Sofía eram tão rápidos e certeiros quanto são os dos crupiês para aquele alfabeto de mãos, números e cores com que se escreve todas as noites os panos das mesas de roletas.


Alan Pauls

O passado


alma irmã da minha



Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão. No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto.



Caio Fernando Abreu

Meu nome é Caio F.
Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada



dos registros importantes



– Todos nós perdemos coisas preciosas ao longo da vida – diz ele quando o telefone enfim pára de tocar. – Oportunidades ou possibilidades importantes, emoções que nunca mais experimentamos. Esse é um dos significados da vida. Mas dentro de nossas mentes – eu ao menos acho que é dentro das nossas mentes – existe um pequeno aposento destinado a guardar tais preciosidades na forma de lembranças. Deve ser um aposento semelhante àquele em que guardamos o acervo desta biblioteca. E para sabermos a exata situação de nossa alma, temos de fabricar continuamente novos cartões de referência. Temos de varrer o aposento, de arejá-lo, de trocar a água doa vasos de flores. Em outras palavras, você vai viver para sempre dentro de sua própria biblioteca.



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


o vício e o inevitável



Me pergunto se todas as vidas são tão vertiginosas e caóticas como a minha. Será que todos vivem tão desesperadamente? É insuportável. Às vezes, penso que preciso me refrear um pouco. Outras vezes, penso que já está tudo feito. E não tem volta. Quando a gente escreve até transformar a escrita em vício, a única coisa que se faz é explorar. E para encontrar alguma coisa é preciso ir até o fundo. O pior é que uma vez no fundo, é impossível regressar até a superfície. Não se pode sair jamais.

Pedro Juan Gutiérrez


Na zona diabólica - O insaciável homem-aranha


ternura



Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.


Vinicius de Moraes

Novos Poemas / Antologia Poética


a quenga II



Depois, a rapariga levou Hoshino para a cama e com as pontas dos dedos e da língua acariciou-lhe carinhosamente o corpo, logo conseguindo nova ereção. Firme e rígida, levemente inclinada para a frente como Torrer de Pisa em desfile carnavalesco.

- Viu? você já está pronto para outra sessão – disse ela. Em seguida, dedicou-se a mais uma série de movimentos. – Tem algum pedido especial a fazer? Um pedido do tipo “gostaria de fazer assim, ou assado”? O Coronel Saunders me disse para lhe dar tratamento especial.
- Bem, assim de repente não me ocorre nenhum pedido especial, mas que acha de citar mais alguma coisa do tipo filosófico? Não entendo nada, mas talvez sirva para retardar a ejaculação. Do jeito que vai, não vou conseguir segurar por muito tempo...
- Vejamos então... É um tanto antigo, mas o que acha de Hegel?
- Serve, serve. O que você quiser.
- Pois recomendo Hegel. Antiquado, mas... Tá-rá!, aqui vai um dos oldies but goodies!
- Ótimo.
- “O eu é o conteúdo da relação e a relação mesma”.
- Ahn...!
- Hegel estabeleceu a chamada “consciência-de-si” e diz que o sujeito humano não só tem conhecimento de si mesmo e do objeto separadamente, como também melhor se compreende pela projeção de si sobre o objeto como mediador. Isto é “consciência-de-si”.
- Não entendi nada.
- Em outras palavras, é o que estou fazendo com você neste momento. Para mim, eu sou o si e você é o objeto. Para você, é naturalmente o contrário: você é o si e eu sou o objeto. Neste momento estamos realizando uma permuta de si e do objeto e assim estabelecendo a “consciência de si”. Ativamente.
- Continuo não compreendendo, mas me sinto consolado.
- É o que interessa.



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


sobre a declaração de amor



A linguaguem é uma pele: esfrego minha liguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha liguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda um atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar um significado único que é 'eu te desejo', e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio (...).



Roland Barthes

Fragmentos de um Discurso Amoroso


assim falou Zaratustra



Amo aquele que ama sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo.

Amo o que não reserva para si uma gota do seu espírito, mas que quer ser inteiramente o espírito da sua virtude, porque assim atravessa a ponte como espírito.

Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o se destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e não viver mais.

Amo o que não quer ter demasiadas virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, porque é mais um nó que a que se ata o destino.

Amo o que prodigaliza a sua alma, o que não quer receber agradecimentos nem restitui, porque dá sempre e não quer se poupar.



Friedrich Nietzche


o querer e o poder



Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


a importância do amor que acaba



Foi muito importante para mim conhecer um amor assim fiel, verdadeiro, caloroso. Ele tocou profundamente meu coração, e eu lhe retribui com felicidade tal, que, se você ainda me quiser bem, não deve lamentá-lo; não se lastime por ter me dado tanto, pois tudo isso foi recebido com muito reconhecimento. A vida é curta e fria, sim, e é por isso que você estaria errado de dispensar sentimentos como os nossos, quentes, intensos. Não fomos loucos por nos amarmos assim [...], nós nos tornamos felizes por algum tempo, verdadeiramente felizes, e isso é mais do que algumas pessoas obterão de suas vidas, eu jamais o esquecerei e você se lembrará disso, às vezes, espero.



Simone de Beauvoir

Cartas a Nelson Algren - Um amor transatlântico [em dezembro de 1948]


da perdição



começa-se a escrever com gana, porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre uma gota de vida, e a vida está toda fora, além da janela, fora de você, e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo, dar um salto. Quem sabe é melhor assim; talvez quando escrevia com prazer não era milagre nem graça: era pecado, idolatria, soberba. Então estou fora disso tudo? Não, escrevendo mudei para melhor: consumi apenas um pouco de juventude ansiosa e insconsciente. De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu.



Italo Calvino

O Cavaleiro inexistente


sete chaves



Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo
fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio silencioso e origem que não confesso –
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.


Ana Cristina Cesar

A teus pés


das primeiras questões



Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?

O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo do masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida e mais ela é real e verdadeira.

Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.

Então, o que escolher? O peso ou a leveza?

[...]

Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria razão? Essa é a questão? Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


a quenga



A rapariga guiou Hoshino para fora dos limites do santuário e entrou num motel nas proximidades. Encheu a banheira, despiu-se primeiro num único movimento sinuoso e depois tirou as roupas do rapaz. Já na banheira, a rapariga lavou-o meticulosamente, passou a língua por todo o seu corpo e depois se dedicou à felação com apuro e arte. Muito antes de pensar em qualquer coisa, Hoshino já tinha ejaculado.

- Caramba! nunca experimentei nada tão fantástico! - comentou o rapaz afundando lentamente na água quente.
- E isso é apenas o aperitivo - disse a rapariga. - O próximo passo é muito, mas muito mais fantástico.
- Mas gostei do aperitivo, realmente.
- A que ponto?
- A ponto de não conseguir pensar nem no passado, nem no futuro.
- "O presente puro é o inapreensível avanço do passado a roer o futuro. Para falar a verdade, toda percepção já é memória."

Hoshino ergueu a cabeça, e boquiaberto, fixou o olhar no rosto da rapariga.

- Que é isso? - perguntou.
- Henri Bergson - respondeu ela lambendo um resto de sêmen na ponta do pênis. - Maéraememóra.
- Não entendi.
- Matéria e memória. Nunca leu?



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


instrucciones para dar cuerda al reloj



Allá al fondo está la muerte, pero no tenga miedo. Sujete el reloj con una mano, tome con dos dedos la llave de la cuerda, remóntela suavemente. Ahora se abre otro plazo, los árboles despliegan sus hojas, las barcas corren regatas, el tiempo como un abanico se va llenando de sí mismo y de él brotan el aire, las brisas de la tierra, la sombra de una mujer, el perfume del pan.

¿Qué más quiere, qué más quiere? Atelo pronto a su muñeca, déjelo latir en libertad, imítelo anhelante. El miedo herrumbra las áncoras, cada cosa que pudo alcanzarse y fue olvidada va corroyendo las venas del reloj, gangrenando la fría sangre de sus rubíes. Y allá en el fondo está la muerte si no corremos y llegamos antes y comprendemos que ya no importa.



Júlio Cortázar

Historias de Cronópios y de Famas


autoconhecimento



Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repuganava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação... Não, não - repetia-se ela - , é preciso não ter medo de criar. No fundo de tudo possivelmente o animal repugnava-lhe porque ainda havia nela o desejo de agradar e ser amada por alguém (...) Porque a melhor frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bondade me dá ânsias de vomitar. A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo. Refrescavam-na de quando em quando, botavam um pouco de tempero, o suficiente para conservá-la um pedaço de carne morna e quieta.



Clarice Lispector

Perto do Coração Selvagem


o sentir e as idéias



quando amamos, não cessamos de nos fazer indagações: se é honesto ou desonesto, se é inteligente ou estúpido, aonde nos levará este amor, e assim por diante. Se isto é bom ou mau não sei dizer, mas que atrapalha, naõ satifaz e irrita, isto eu sei.


Eu compreendi que quando se ama, é necessário nos pensamentos sobre esse amor, partir de algo mais elevado, mais importante do que infelicidade ou felicidade, pecado ou virtude no seu sentido corriqueiro, ou então não se deve pensar de todo.



Anton Tchekov

Do amor

dos caminhos



Quando vivemos nossa vida, é preciso aceitar também o erro, sem o qual a vida não será completa: nada nos garante - em nenhum instante - que não possamos cair em erro ou em perigo mortal. Pensamos talvez que haja um caminho seguro; ora, esse é o caminho dos mortos. Então nada mais acontece e em caso algum ocorre o que é exato. Quem segue o caminho seguro está como que morto.



Carl Gustav Jung

Memórias, sonhos e reflexões


das revelações



Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim da sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio não será o mesmo. O que vem depois, não se sabe.



Caio Fernando Abreu

Eles, em O Ovo Apunhalado


veja bem



O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver, disse a mulher, amparar a fragilidade da vida um dia após outro dia, como se fosse ela a cega, a que não sabe para onde ir, e talvez assim seja, talvez ela realmente não o saiba, entregou-se às nossas mãos depois de nos ter tornado inteligentes, e a isto a trouxemos



José Saramago

Ensaio sobre a Cegueira

o jagunço e a arte



'Você tem saudade de seu tempo de menino, Riobaldo?' – ele me perguntou quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha saudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo eu já estava crespo na confusão de todos. Em desde aquele tempo eu já achava que a vida da gente vai em êrros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava.


João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


muito simples


Minha vida é feita de fragmentos (...). Um amontoado de fatos que só a sensação é que explicaria.

De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.

[...] a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma. Viver é mágico e inteiramente inexplicável.


Clarice Lispector

Um Sopro de Vida (Pulsações)

os versos que te fiz



Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não t'os digo ainda…
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E nesse beijo, amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca

Livro de 'Sóror Saudade'